“O livro começa com ‘depois que o mundo acabou fomos todos para o céu’. Sonhei essa frase inicial e todo o livro se constrói a partir dela”, adiantou o autor angolano no encontro realizado na Casa da Cultura, do ciclo “Muito Cá de Casa”, em que manifestou “alegria por contar com sala cheia”.

O romance “A Vida no Céu”, ponto de partida para esta discussão literária com leitores, promovida pela DDLX em parceria com a Câmara Municipal de Setúbal, é, segundo o próprio Agualusa, “uma parábola ecológica”, uma “reflexão sobre o planeta”, escrito para os dois filhos, de 16 e 9 anos, que “foram dando sugestões”.

Totalmente ficcionada, a obra, sobre a transferência da vida humana para o céu, em cidades flutuantes, devido a um desastre ambiental que tornou impossível a existência na Terra, obrigou o autor a um exercício complexo.

“Tentei colocar-me no lugar destas pessoas e pensar no que me faria falta no céu. O mais divertido foi construir todo esse mundo imaginário”, confidenciou. “Este livro funcionou como um espaço de recreio, depois de outros, como ‘Teoria Geral do Esquecimento’ e ‘Barroco Tropical’, mais sombrios, diria.”

A obra, apresentada como “um romance para jovens e outros sonhadores”, tem diversos pontos de interesse que a tornam abrangente em termos de públicos. “O homem que vai para o céu não é tão diferente do homem que habitava Terra”, salientou António Ganhão, escritor e crítico literário, que moderou a sessão em parceria com José Teófilo Duarte, da DDLX, ao aludir que a “ascensão” transportou realidades terrenas – os povos ricos em cidades construídas em cómodos dirigíveis, os outros em aldeias feitas com balões.

O céu, espaço físico onde, segundo este livro, se pode viver, é para Agualusa um local cada vez mais utilizado no processo criativo. As obrigações literárias e editoriais impõem deslocações constantes, mas as viagens são bem aproveitadas. “Escrevo muito em aviões”, adiantou. “É bom. Temos uma boa vista e estamos com a cabeça nas nuvens.”

Esta sessão do “Muito Cá de Casa” serviu ainda, em questões colocadas pelo público, para revelar algumas das preferências literárias do autor angolano, como os escritores latino-americanos – o argentino Jorge Luis Borges foi “homenageado” no livro “O Vendedor de Passados”, no qual reencarna numa osga. “O primeiro escritor que me deu mais vontade de escrever foi o Eça [de Queirós]. A ‘Nação Crioula’ é-lhe dedicada.”

O “dicionário filosófico do mundo flutuante para uso de nefelibatas”, ou seja, aqueles que vivem nas nuvens, criado para introduzir cada um dos 15 capítulos de “A Vida no Céu” – intitulados Céu, Viagem, Noite, Terra, Magia, Mar, Voar, Identidade, Sonhar, Nuvens, Esperança, Vida, Epifania, Luz e Liberdade –, pode dar origem a uma obra específica, revelou.

Mal acabou aquele romance, Agualusa começou a escrever outro, “um livro sobre sonhos”, um pouco na linha do antecessor, mas parou, o que, indicou, nunca lhe tinha acontecido. Depressa apontou baterias para um romance centrado no século XVII em área geográfica da atual Angola, sobre a Rainha Ginga, mulher com grande liberdade sexual, que exigia ser tratada por “rei” e liderava ela mesma as tropas.

“Senti que aquele livro sobre sonhos não era, diria, novo. Este é mesmo novo. O que sinto é: agora, sim, estou a escrever um romance”, afirmou, entusiasmado, José Eduardo Agualusa.

Outra questão discutida na sessão do “Muito Cá de Casa”, sobre a nacionalidade de um escritor que se reparte por Portugal, Angola e Brasil, acabou por ser esclarecida pela leitura, feita do público, do significado de Identidade no mencionado dicionário de nefelibatas, oitavo capítulo de “A Vida no Céu”, a que Agualusa respondeu com um bem-humorado “eu não diria melhor”:

“Não tem a ver com o lugar onde nascemos, pois no céu tudo é movimento, e sim com os lugares por onde passamos. Identidade é o que a viagem faz de nós enquanto continua. Só os mortos, os que deixaram de viajar, possuem uma identidade bem definida.”