Casa do Turismo | 'O Gato e o Vento'

O telhado da Casa do Turismo, na Praça de Bocage, ostenta uma curiosa peça escultória de arte urbana, da autoria de Ricardo Romero, intitulada “O Gato e o Vento”.


A escultura em resina acrílica, modelada a esferovite, com 3,80 metros de comprimento e 2,30 de altura, retrata um gato preto, com as duas patas esquerdas levantadas, como se estivesse a passear.

“O Gato e o Vento”, instalado a 28 de abril, é da autoria do artista Ricardo Romero, do Matilha Studio, conhecido por desenvolver trabalhos que aliam a arte urbana a causas sociais e animais.

A figura tridimensional, descreve Ricardo Romero, convoca a azáfama quotidiana e a ausência de contemplação da arte.

“As pessoas estão muito habituadas à estatuária clássica nas cidades. Olham para as coisas e não veem, não as apreciam. A vida pode ser vivida se a contemplarmos ao mesmo tempo.”

Apesar de ter várias possibilidades interpretativas, a obra, acrescenta Carla Tavares, project manager de Ricardo Romero, convida a população a parar e a refletir sobre a correria que é a vida.

O escritor Paulo Kellerman é o autor da nota explicativa da instalação na cobertura da Casa do Turismo, que é apresentada a seguir.

“O gato e o vento”

I – De passagem

Olhas e pensas: é um gato preto, apenas um gato preto. E segues a tua vida, porque nada te interessa mais do que seguir a tua própria vida. Olhas e já me esqueceste, são esses os dois lados inseparáveis da tua ação: olhar e esquecer. De forma simples (e tu precisas que as coisas sejam simplificadas, para que não percas tempo a pensar nelas), chama-se a isso olhar e não ver. Quantas vezes te acontece durante um único dia? Quantas vezes olhas sem ver? Ou será que chegas realmente a ver alguma das coisas que olhas? Talvez passes o dia de olhos fechados, apesar de aparentemente estarem abertos. Mas isso é um assunto teu. Fazes o que sempre fizeste: segues a tua vida; apesar de na verdade talvez não saberes bem para onde estás a seguir. Mas isso também é um assunto teu. Sou um simples gato preto, aqui colocado para que tu me olhes; se me vês ou não, pouco importa. Especialmente para mim: mesmo que não me vejas, continuarei aqui. Ou seja (estou a simplificar outra vez, para que não percas tempo a pensar; não te ofendas), o teu olhar é irrelevante; e o que fazes com o teu olhar também é irrelevante. Podes olhar, podes não olhar; podes ver, podes não ver. O que muda? Nada. O mundo permanece inalterado. Não o afetas, apenas passas por ele. Deslizas pelo mundo. Com pressa, sempre com pressa. Porquê tanta pressa? Porque não paras e olhas e vês? Para ti, poderia não ser irrelevante. Olhas um gato preto na rua e vês como sou grande. Sou grande para que me vejas. Há algo de inesperado nisso, não achas? E esse inesperado poderia causar-te curiosidade ou desconforto. Duas coisas boas, duas coisas fundamentais: a curiosidade e o desconforto podem fazer com que te mexas, que procures, que imagines, que questiones. São motores. Queres que simplifique? Então aqui vai: se não sentes curiosidade ou desconforto é como se estivesses morto. Sim, eu sei que não pareces nada morto, sei que segues a tua vida, porque nada te interessa mais do que seguir a tua própria vida. Segues, é verdade; e sempre com pressa, com tanta pressa. Mas quem te disse que movimento é sinónimo de vida? Mexo-me, logo vivo. Disseram-te isso, não foi? E tu acreditaste. Convenceram-te que se te mexeres muito, em todas as direções, sem nunca parar, estás vivo. Que é isso estar vivo: nunca parar. Pois eu digo que te enganaram. Sim, sou um gato preto com dois metros e vinte de altura, feito de resina acrílica sobre esferovite. Aparentemente, não me mexo; não sigo a minha vida; não tenho pressa. Estou aqui, simplesmente. Tão imóvel que passas por mim sem me ver, como se fosse paisagem; não, como se fosse menos que paisagem. Como se fosse uma invisibilidade; uma invisibilidade preta com dois metros e vinte de altura. Ou uma transparência. Mesmo que olhes, vais pensar assim: é um gato preto, apenas um gato preto. Porquê? Porque não vês aquilo que olhas. Porque quando olhas apenas te vês a ti, apenas vês os teus pensamentos. E não aceitas que te digam aquilo que não te interessa ouvir. Apenas te ouves a ti próprio, e aos teus ecos. Não te interessa ouvir o que digo. Não tens curiosidade pelo que desconheces, porque precisarias de assumir que na verdade desconheces praticamente tudo; e isso causar-te-ia desconforto. O desconforto que te faria mover para satisfazeres a curiosidade, entendes? É por isso que não paras, é por isso que não vês? É por isso que preferes deslizar? Porque quem desliza não se agarra a nada. Não se prende. E tu valorizas muito a tua liberdade, não é? Dizes: sou livre. E até inchas de orgulho quando te ouves dizer que és livre, até cresces. Ultrapassas os meus dois metros e vinte de altura. Mas de que te serve a liberdade se não a podes partilhar? Sou apenas um gato preto, não percebo muito de humanidade. Mas parece-me que aquilo a que chamas liberdade pode confundir-se um pouco com algo a que eu chamaria solidão. És livre ou estás só? Bom, mas isso é um assunto teu. Todos os assuntos são teus. Não pares, não vejas, não penses, não questiones. Problema teu. Desculpa a pergunta, mas… O que fazes é viver ou fugir? Parece-me que olhas para o mundo como se fosse transparente. A paisagem é transparente. A cidade é transparente. Até as pessoas são transparentes. Como vento. Para ti tudo é vento? Agitações invisíveis em que nem sequer reparas. Sopros. Desculpa lá falar assim, sou um bocado senhor dos meus pensamentos e não me acanho em verbalizá-los. Coisa de gato. Mas essa tua arrogância faz-me confusão. Passas a correr, concretizando aquela velha frase que diz: parar é morrer. Que caralho de frase tão idiota. Faz-me mesmo confusão. Se todos correm e nunca param, como fazem para falar uns com os outros? Em que momento partilham sorrisos? Em que momento se conhecem? O movimento é inimigo do conhecimento, acho eu. E do afeto. Como abraças alguém em movimento? Explica-me lá. É pena eu ser transparente para ti; não me vês, não me ouves. Não pode haver diálogo com a transparência. Não irás dizer-me: mas que sabes tu de abraços, se és um gato? Olhas e pensas: é um gato preto, apenas um gato preto. Não vês para além do que olhas. Não entendes que o mundo é uma janela; uma imensidão de janelas. Não entendes que até eu sou uma janela. Não entendes que onde tu vês transparência podem existir espelhos; espelhos que te refletem, onde te podes olhar e conhecer, onde te podes aprender. Onde podes encontrar perspetivas diferentes de ti. Prendes o teu olhar e não deixas que ele veja, não permites que espreite pelas janelas. Receias os espelhos. Prendes o teu espírito dentro de ti. E depois ainda dizes: sou livre. Fazes-me rir, desculpa que te diga. Passas a correr e eu permaneço aqui, parado; um gato na cidade, nem sequer chego a ser um sorriso na multidão. Apenas um gato preto com dois metros e vinte de altura, feito de resina acrílica sobre esferovite. Mas tu, que passas a correr, és feito de carne que não sonha; e por isso, estás muito mais morto do que eu. És apenas movimento, e nada mais. Queres que simplifique? És vento, és um sopro. És um vuu-uuuu-uuu vuuuuu vuuuuuu-uu. E eu aqui estou, e eu por aqui fico: a ver o vento passar.

II – De paragem

Até que um dia, paras. (O vento para e olha.) Depois, fazes uma pergunta: o que vês quando olhas?

Se fosse uma pessoa, teria sorrido perante algo que poderia ter sido eu a dizer. Mas os gatos não têm o dom de sorrir, especialmente os que são feitos de resina acrílica sobre esferovite. Por isso, não sorrio. Mas é assim que começa a nossa primeira conversa. Com uma pergunta e um sorriso imaginado.

O que vejo quando olho. Falo das pessoas que passam como se fossem vento. E depois falo do rio, que está constantemente a passar e nunca para; tal como as pessoas e o vento. As pessoas são como os rios ou os rios são como as pessoas? Por vezes, não consigo distinguir. Mas aquilo que prefiro olhar é a serra. É essa a minha janela preferida. Porque não passa: majestaticamente imóvel, contempla-me. Trocamos olhares silenciosos, eu e a serra. As nossas imobilidades tocam-se desse modo: através dos nossos olhares. E quando nos olhamos, somos movimento e ação. Entendimento.

É disto que te falo na nossa primeira conversa. E tu, que és movimento puro, sorris.

Vejo-te retomar o teu movimento quase perpétuo e pergunto-me se haverá uma nova conversa, algures no futuro. Gostei que tivesses parado, gostei que tivesses perguntado, gostei que tivesses escutado. Gostaria que tivesses dito: até amanhã. É das coisas mais bonitas que se podem dizer, que se podem escutar. Não achas?

Olho a serra, escuto a passagem do rio. Lá de baixo, o poeta murmura um verso: “No espírito maior sempre há fraqueza.” Por um momento, sinto-me só. Sinto-me pequeno. Como se ouvir a palavra fraqueza me provocasse fraqueza.

O movimento cansa. A imobilidade cansa. O pensamento cansa. A inexistência de pensamento cansa. A liberdade cansa quase tanto como a ausência de liberdade. O gato preto com dois metros e vinte de altura, que é feito de resina acrílica sobre esferovite, também sofre; apesar de não ser feito de carne. Porque se diz que apenas a carne sofre? Por um momento, não me sinto um espírito maior; apenas fraqueza. Nem sei que parte de mim sofre, se a resina ou a esferovite. Saberás como se toca a dor?

A serra ignora-me, o poeta continua a sussurrar. Um sussurro que se confunde com o sopro do vento. Qual é, afinal, a diferença entre vento e poesia? Decido: é na esferovite que me dói. No mais fundo de mim.

O mundo é uma janela, costumo dizer eu. Mas por vezes parece que alguém desce as cortinas: o mundo foge-me de vista e apenas vejo a cortina. É nisto que penso: como afinal preciso do vento que passa, para agitar a cortina que me separa do mundo; para a sacudir e afastar.

Por aqui continuo: à espera que regresses; e pares de novo. Porque olhaste e viste.

Espero. Mas nunca to confessarei.