Frei Agostinho da Cruz - conferência do cardeal Tolentino Mendonça

O cardeal José Tolentino Mendonça esteve em Setúbal, no dia 3 de janeiro, ao final da tarde, para proferir uma conferência sobre a vida e obra do poeta e frade arrábido Agostinho da Cruz, que serviu para exaltar os valores ambientais.


“Alta Serra deserta, donde vejo, / As águas do Oceano duma banda, / E doutra já salgadas as do Tejo.” Foi o frei Agostinho da Cruz que o escreveu, em poema, e serve de mote à celebração da sua vida e obra, a propósito dos 400 anos passados da sua morte, em 1619, e dos 480 anos do seu nascimento, em 1540.

Frei Agostinho da Cruz, cujo nome secular era Agostinho Pimenta, nasceu em Ponte de Barca, Alto Minho, e morreu em Setúbal. Aos 20 anos, o poeta da liberdade toma uma opção de vida radical, tomando o hábito dos frades arrábidos.

O bispo José Tolentino Mendonça, nomeado cardeal em outubro do ano passado pelo Papa Francisco, veio a Setúbal para falar sobre frei Agostinho da Cruz, figura imortalizada no Tríptico dos Setubalenses Ilustres, fresco histórico de Luciano dos Santos, exposto no Salão Nobre dos Paços do Concelho, onde decorreu a sessão.

Na conferência, organizada pela Diocese de Setúbal, com o apoio da Câmara Municipal, o cardeal propôs ao público um diálogo que ressoasse a “luminosa atualidade” do frei Agostinho da Cruz.

O líder da Igreja de São Domingos, em Roma, pegou na história da Serra da Arrábida e no modo de vida de Agostinho da Cruz, que nela habitou como frei durante perto de duas décadas, para falar do atual domínio despótico do Homem sobre a Natureza.

Começou por falar da serra como centro de hospedagem a poetas e do facto de espelhar os grandes debates culturais e religiosos do século XVI, até chegar ao fenómeno atual do “ecocídio”, ou seja, a ameaça da destruição da Terra por parte do Homem.

“O usa e deita fora, o caos urbano, a degradação ambiental, o cúmulo da poluição, as emissões tóxicas, o dispêndio de energia e de água em excesso, a vida aprisionada a espaços de cimento e asfalto, privada do contacto com a natureza, a rutura dos vínculos de integração e comunhão”, denunciou.

O triunfo do atual paradigma tecnológico e das arrasadoras consequências é, citando o líder máximo da Igreja Católica, Papa Francisco, fruto daquilo que considera ser “um antropocentrismo despótico, desordenado e cego”.

Por isso, apelou à urgência na proteção da “casa comum” da humanidade, associando a preocupação de unir todos na procura de um “desenvolvimento sustentável e integral”.

Em relação à revolução digital, o cardeal, responsável pelo Arquivo e Biblioteca Apostólica do Vaticano, voltou a citar um dos textos do Papa Francisco. “Não vivemos apenas uma época de mudanças, mas uma verdadeira mudança de época”, caracterizada por uma crise antropológica social e ambiental global.

Durante a conferência, Tolentino Mendonça falou de “crise”, uma palavra que se “tornou rotinizada para descrever a nossa experiência do mundo” e que marcou também, conclui, o período histórico do jovem Agostinho da Cruz.

“Ele viveu a chamada crise do Renascimento, desencadeada por uma sucessão de eventos que alteraram profundamente a maneira de conceber o mundo e a realidade histórica. A resposta católica mobilizada pelo concílio de Trento, o mais longo da história da Igreja, de 1545 a 1563.”

Em Portugal, a este cenário de crise acrescentou-se a instabilidade política e social derivada da crise de sucessão de D. Afonso III e das consequências do fatal desfecho de Alcácer Quibir de 1578, referiu.

“Celebrar o frei Agostinho da Cruz é celebrar o contemplativo. Ele fala a todos homens e mulheres da cidade. Não é uma figura apenas para ser vivida na cerca conventual. Por isso é que ele é uma figura viva, porque isso é que hoje o estamos aqui a celebrar”, concluiu Tolentino Mendonça.

Ainda houve tempo para elogios à organização da conferência e ao comissário das comemorações a frei Agostinho da Silva, Ruy Ventura, que, para o cardeal, “tem sabido manter viva a memória e a obra” do frade arrábido nos tempos atuais.

Ruy Ventura distribuiu, igualmente, rasgados elogios ao cardeal, poeta e estudioso da Bíblia, natural de Machico, Madeira, e que entrou no seminário aos 11 anos.

“É um dos nossos maiores poetas contemporâneos, um dos mais interessantes e inquietantes teólogos e uma figura iminente da igreja universal.”

Já a presidente da Câmara Municipal de Setúbal, Maria das Dores Meira, recordou, no seu discurso, Agostinho da Cruz, São Francisco Xavier, Lima de Freitas, Sebastião da Gama, Bocage e proferiu algumas palavras de amizade a Tolentino Mendonça.

“Alimenta-nos também de palavras e de ideias. Dá-nos o grato prazer de connosco partilhar o pensamento de forma clara e brilhante.”

Em coerência com o que tinha sido a linha de pensamento do cardeal, o bispo de Setúbal, D. José Ornelas, chamou a atenção para a importância da preservação da natureza, tomando como exemplo Frei Agostinho da Cruz, “um homem que encarna a identidade setubalense”, e o seu desafio da ecologia.

O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, o bispo de Bragança-Miranda, António Montes Moreira, e vários sacerdotes da Diocese de Setúbal foram alguns dos rostos presentes na plateia da conferência realizada no Salão Nobre dos Paços do Concelho, que se encheu de público atento.

Marcaram ainda presença no encontro sobre Frei Agostinho da Cruz, elementos do executivo, o presidente da Assembleia Municipal de Setúbal, André Martins, e os líderes das juntas de freguesia do concelho.

No final houve um momento musical a cargo do Mediaevus Ensemble, agrupamento que apresentou alguns poemas de Agostinho da Cruz, com melodias compostas pelos seus músicos e pelo compositor António Laertes.

Antes, a conferência teve início com um espetáculo do grupo Passione, de João Mendonza e Carlos Barreto Xavier.

As celebrações do IV Centenário da morte do frei Agostinho da Cruz e dos 480 anos do seu nascimento tiveram início em março do ano passado e estendem-se até maio, com iniciativas que passam por colóquios, apresentação de obras literárias e exposições.